A malfadada política macroeconômica da Lei Kandir

Por Onofre Alves Batista Júnior e Fernanda Alen Gonçalves da Silva

A malfadada política macroeconômica da Lei Kandir

*Por Onofre Alves Batista Júnior e Fernanda Alen Gonçalves da Silva

A Constituição da República Federativa do Brasil previa, inicialmente, a incidência do ICMS na exportação sobre produtos primários e semielaborados, uma vez que considerava imune tão somente a remessa de mercadorias industrializadas destinados ao exterior.[1] Acontece que as regras de incidência do imposto foram alteradas pela Lei Kandir (Lei Complementar 87 de 1996), seguida pela Emenda Constitucional 42 de 2003, na medida em que a desoneração do ICMS foi ampliada para os produtos primários e semielaborados (como o minério, o café etc.). Admitiu-se ainda o direito de crédito aos insumos que integram o processo produtivo, agravando ainda mais o rombo às contas estaduais.

Para compensar a perda arrecadatória do principal imposto estadual, alguns mecanismos foram criados. Inicialmente, adotou-se o seguro-receita e, posteriormente, a saída via orçamentária (para mais detalhes vide artigo anterior), com critérios a serem definidos em Lei Complementar ainda não legislada.[2] Entretanto, esses mecanismos se mostraram (e assim continuam) insuficientes. Em larga medida, os Estados tiveram perdas muito superiores à compensação recebida (no caso de Minas Gerais isso tem sido apontado continuamente pelos Pareceres do TCE-MG[3]).

Embora a justificativa alegada da desoneração fosse incrementar as exportações e fortalecer a economia, o contexto da edição da lei revela tão somente sua face negativa. É que a Lei Kandir foi editada no bojo da política macroeconômica do Plano Real e o pressuposto desse plano estava na âncora cambial (paridade dólar-real), extremamente prejudicial à balança comercial nacional. Daí, era preciso compensar os déficits comerciais mediante uma forte política de desoneração das exportações. Acontece que a União agiu estendendo seus braços dentro dos bolsos dos Estados.

Nas palavras de Riani e Albuquerque,[4] “a utilização do ICMS foi justificada, entre outras razões, como alternativa para não alterar a política cambial de paridade do real com o dólar americano. Acreditava-se que a adoção desta medida poderia minimizar os saldos negativos apresentados pela balança comercial do país”.

Se a desoneração não se sustenta pelo suposto benefício (que nunca chegou), tampouco se pode amparar na suposta justificativa de que não se pode exportar tributo (sob o argumento das regras do mercado internacional e de competitividade). Pelo menos quanto aos recursos naturais esgotáveis, escassos e fadados ao exaurimento natural, essa alegação não faz sentido. É que se a tributação ocorrer unicamente no destino (ou seja, no estado estrangeiro, já que falamos de exportação), implica dizer que o ativo natural exportado será exaurido na origem e produzirá retornos apenas no destino. A troca é visivelmente injusta: esgota-se a capacidade de riqueza (natural) do estado rico em recurso natural, sem atribuir-lhe qualquer compensação financeira (pelo viés tributário). Opera-se, claramente, a violação do dever negativo de justiça de Thomas Pogge,[5] que impõe o dever de não se beneficiar do injusto empobrecimento alheio.

A propósito, é muito estranho se falar de “competividade” e “exportação de tributos” em casos de “posição monopolística” ou ainda em situações de “minas que oferecessem um retorno extraordinário” (como as denominadas world class mines)[6]. Se o país possui o monopólio ou ao menos a liderança mundial no comércio de determinado recurso natural exaurível é evidente que não existe prejuízo algum em se praticar a tributação na origem. É a política contrária que ofende aos interesses nacionais. O próprio Banco Mundial[7] reitera o presente posicionamento, nos seguintes termos:

Na Austrália, por exemplo, contratos de royalties separados foram negociados entre os proprietários e os estados para o desenvolvimento de depósitos excepcionalmente grandes ou ricos – por exemplo, Olympic Dam, Mount Isa, e Broken Hill. (…) No Canadá, Saskatchewan desenvolveu royalties especiais para commodities em que a província tem uma grande vantagem competitiva do ponto de vista de dotação: potássio e urânio. Mais uma vez, a riqueza e o tamanho dos depósitos nesta jurisdição permitem que os governos capturem uma parcela maior dos lucros a partir da reserva.

Afinal, de onde se tirou esse pretenso mandamento tributário aplicável a todos os casos, mesmo quando ocorrem situações de prejuízo ao interesse nacional? Não seria essa ideia o resultado de uma interpretação provinciana de ordenamentos estrangeiros? Estariam outros interesses particularizados sobrepujando os interesses nacionais? Não se estaria assim tão somente aumentando o lucro de exportadores à custa dos recursos do erário estadual?

Por outro giro, quando se permite o creditamento na exportação de produtos primários ou semielaborados, pode-se dizer que acontece um reconhecimento do crédito antecedente vinculado a operação posterior não gravada pelo imposto, constituindo-se um verdadeiro incentivo fiscal. Como afirmam Riani e Albuquerque,[8] “a manutenção do crédito das operações que antecedem as exportações de semielaborados e mesmo de primários, à semelhança do que já se adotava na exportação de produtos industrializados, caracteriza-se formalmente como incentivo fiscal, visto que repercute em reversão do instituto legal que não reconhece crédito antecedente vinculado a operação posterior não gravada pelo imposto”. Em outras palavras, trata-se de um “benefício de caráter heterônomo”, que foi concedido em “legislação nacional sem interferência das unidades da federação, com o objetivo de desonerar integralmente todo o seguimento exportador”.

Em suma, os resultados danosos não se restringem à perda de arrecadação. O que não se via, por detrás da política macroeconômica, eram seus efeitos de longo prazo. Se estivéssemos diante apenas de perdas de receita, quem sabe, a União pudesse reparar os Estados, como havia sido acordado.

A malfadada escolha político-econômica, ao favorecer os exportadores e penalizar os industriais nacionais, criou uma outra realidade para os Estados, principalmente para Minas Gerais (maior exportador de minério de ferro): o desmantelamento da política industrial existente e a consequente desindustrialização. Esta, inestimável e, talvez, irrecuperável.

Para se ter ideia, no Estado de Minas Gerais, em 2015, 60,2% das exportações (por fator agregado) se referiram a produtos básicos e apenas 39,8% a produtos manufaturados e semimanufaturados em conjunto. Não surpreende que 61,4% das exportações em 2015, por intensidade tecnológica, sejam de produtos não industriais, sendo o principal grupo dessa categoria os minerais metalúrgicos, conforme dados do Exportaminas. As demais classificações, por sua vez, ficaram da seguinte forma: “[a] indústria de Média-baixa tecnologia teve participação de 24,5%, Baixa tecnologia de 9,3% e Média-alta tecnologia representou 3,3% das exportações. A categoria Alta tecnologia teve 1,5% de participação”. [9]

Aliás, o próprio Plano Nacional de Mineração (PNM- 2030)[10] reconheceu o efeito da desindustrialização, mostrando que, ao longo da primeira década deste século, o Brasil tem vivenciado um processo que os especialistas chamam de “reprimarização” ou “especialização reversa” de sua pauta de exportações, com a proeminência de bens primários em detrimento aos bens de média e alta tecnologia.

Certo é que o rolo compressor da União vem desmantelando o pacto federativo, alongando seus poderes, restringindo competências estaduais e sacrificando os entes subnacionais.

A União, sistematicamente, federaliza ganhos e subnacionaliza custos. Esse federalismo canibal, dia após dia, vem destruindo o Brasil. Um país de mais de 200 milhões de habitantes, de dimensões continentais, jamais conseguirá ser gerido a partir de políticas forjadas por tecnoburocratas encastelados em Brasília, distantes do povo e dos problemas reais do Brasil. Assim, jamais sairemos dessa crise.

A Federação pede socorro!

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Onofre Alves Batista Júnior é advogado-geral de Minas Gerais, mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e doutor em Direito pela UFMG, pós-doutorado em Direito (Democracia e Direitos Humanos) pela Universidade de Coimbra e professor de Direito Público da UFMG.

Fernanda Alen Gonçalves da Silva é assessora de planejamento da Advocacia-Geral de Minas Gerais. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.

 

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