Conjur publica artigo do advogado-geral do Estado

Entendimento do Supremo sobre IPVA pode gerar guerra fiscal entre os estados

No último dia 24, o Plenário do STF iniciou o julgamento do Recurso Extraordinário 1.016.605, em repercussão geral, no qual se discute o local de cobrança do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA). A controvérsia ocorre quando uma empresa compra um veículo em um estado (onde tem seu estabelecimento) e o registra em outro (onde não tem nada).

No que concerne ao pano de fundo fático da lide, cuida-se de ação por via da qual a autora, pessoa jurídica sediada em Minas Gerais (e que não possui quaisquer filiais ou estabelecimentos fora do território mineiro), registrou seu veículo em Goiás e se insurge contra a cobrança de IPVA pelo estado de Minas[1]. A empresa questiona decisão do Tribunal de Justiça mineiro que reconheceu a legitimidade de Minas (onde reside o proprietário e onde o veículo circula) para a cobrança do imposto relativo a automóvel registrado e licenciado em Goiás.

Vale destacar que não se trata, no caso, de hipótese em que havendo pluralidade de domicílios em relação ao mesmo contribuinte se discute a constitucionalidade da eleição, por este contribuinte, do domicílio no qual irá registrar a propriedade de seu veículo automotor e ao qual deverá pagar o IPVA[2].

O relator da causa, ministro Marco Aurélio, ressaltou que o conflito de competência entre os estados existe em razão da ausência da lei complementar de que trata o artigo 146, I, da Constituição da República regulando a matéria. Para dirimir o conflito, na ausência da lei complementar, entendeu o relator que deve o intérprete observar que a Constituição sinaliza que o tributo cabe ao estado onde o veículo foi licenciado, porque o artigo 158, III, atribui 50% do tributo arrecadado ao município onde foi feito o licenciamento.

Segundo o ministro relator, a ausência de lei complementar própria para dirimir conflitos obriga o intérprete a buscar uma espécie de indício hermenêutico e, em sua opinião, o artigo 158, III, oferece pistas para que se possa firmar o sujeito ativo da tributação nesses casos. Nesse compasso, votou no sentido de dar provimento ao recurso da empresa, declarando inconstitucional o artigo 1º da Lei 14.937/03 do estado de Minas, que prevê a cobrança do IPVA no domicílio do proprietário, independentemente do local de registro[3].

O ministro Alexandre de Moraes abriu posicionamento divergente, destacando que, na espécie, o que se verifica é um “típico caso de guerra fiscal”, por meio da qual alguns estados estariam buscando atrair licenciamentos para seu território, reduzindo o montante a ser recolhido a título de IPVA em seu território. Para fazer jus aos benefícios fiscais, o contribuinte estaria se valendo de falsas declarações, alegando ser domiciliado em um determinado estado quando, na verdade, tem sua sede em outro e seus veículos transitam, da mesma forma, neste outro estado[4].

Para o ministro, o IPVA foi previsto pela primeira vez por emenda constitucional de 1985 (que foi incorporada ao texto constitucional de 1988), buscando remunerar a localidade onde, por pressuposto (e usualmente), circula o veículo (em face da maior exigência de gastos das vias públicas). Essa seria a teleologia do dispositivo constitucional e, exatamente por essa razão, metade do tributo arrecadado deveria ficar com o município onde o veículo deve circular, nos exatos termos do artigo 158, III, da Constituição.

Como bem registrou o ministro Alexandre de Moraes, a legislação de trânsito determina que o veículo deve sempre ser licenciado no domicílio do proprietário. A propósito, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) não permite o registro fora do estado de domicílio do proprietário. Para o ministro, se a legislação diz que o veículo só pode ser licenciado no domicílio do proprietário, o registro levado a cabo foi fraudulento e não encontra amparo na Constituição[5]. O julgamento foi suspenso por pedido de vista do ministro Dias Toffoli.

Com a devida vênia que se pede ao sempre ilustre ministro relator, a razão está com o ministro Alexandre de Moraes. Mais do que isso, a linha decisória proposta pelo relator, ousa-se afirmar, pode deflagrar uma verdadeira guerra fiscal do IPVA, proporcionando uma ruína ainda maior às já combalidas finanças dos estados.

Antes de tudo, cumpre observar que a lei complementar tributária de que trata do artigo 146, I, da Constituição deve ser editada para dirimir “conflitos de competência”. Entretanto, não existe qualquer “conflito” a ser dirimido! O arcabouço jurídico pátrio resolve absolutamente a questão na medida em que proíbe que o proprietário do veículo licencie o veículo onde bem entender! Não existe “conflito” a ser dirimido pela lei complementar, mas, como bem pontua o ministro Alexandre de Moraes, fraude e ilicitude que merece repulsa e não amparo.

É ressabido que o Direito Tributário é um “direito de superposição”, na medida em que a hipótese de incidência é desenhada para recair por sobre fatos geradores que ocorrem no mundo privado dos contribuintes. O Direito Tributário não disciplina operações privadas do contribuinte, mas captura fatos desse mundo privado. Nesse sentido, a lei tributária toma conceitos e institutos de Direito Privado e os utiliza na modelagem das normas de incidência tributária. Existe, assim, uma hendíase inseparável entre os conceitos do Direito Privado e os adotados pelo Direito Tributário, que são incorporados e integram a matriz tributária. É por isso que o Direito Tributário reclama especial atenção ao elemento sistemático da interpretação.

Nesse compasso, a lei tributária não pode deformar conceitos e institutos privados, sob pena de se fraudar assim a Constituição. Exatamente por isso é que o artigo 110 do Código Tributário Nacional determina que a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas do Direito Privado utilizados pela Constituição. Nessa mesma toada, o sujeito passivo não pode distorcer mandamentos e proibições do mundo privado para afastar a aplicação de normas tributárias, sob pena de, assim, se fraudar a lei dos tributos.

No caso em tela, como bem observou o ministro Alexandre de Moraes, o que existe é uma fraude que deve ser afastada, fazendo-se, assim, íntegro e eficaz o mandamento constitucional. Observe-se que o artigo 120 do Código de Trânsito Brasileiro prescreve que “todo veículo automotor, elétrico, articulado, reboque ou semirreboque, deve ser registrado perante o órgão executivo de trânsito ou do Distrito Federal, no Município de domicílio ou residência de seu proprietário, na forma da lei”. Portanto, se não pode ocorrer divergência entre o local de registro e o local onde reside o proprietário do veículo, a norma pode dispor que o IPVA é devido ao local onde reside o proprietário ou onde o veículo foi licenciado. Tudo muito claro! Não há qualquer inconstitucionalidade, portanto, a ser dirimida! O conflito de competência tributária, portanto, só existiria se fosse legitimamente possível dissociar o local de residência do local de registro. Isso não é juridicamente possível! Portanto, a situação é tão somente uma fraude à lei!

Diversamente, a Constituição sinaliza no sentido contrário ao das conclusões do relator, na medida em que o IPVA é um tributo sobre a propriedade. Nesse sentido, por pressuposto, o tributo é devido no local onde o proprietário usa, frui e goza de seu bem (veículo automotor). Em outras palavras, firma-se a presunção de que o tributo deve ser pago no local onde o proprietário tem seu bem, razão pela qual o tributo que incide sobre a propriedade deve ser cobrado, obviamente, no local onde está o proprietário! No caso em discussão, está evidenciado que todos os poderes que compõem o direito de propriedade são exercidos em Minas; da mesma forma, não há qualquer vínculo que ligue o estado de Goiás ao exercício de tal direito pelo proprietário.

A Lei estadual mineira 14.937/2003 dispõe, em seu artigo 1º, que “o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA — incide, anualmente, sobre a propriedade de veículo automotor de qualquer espécie, sujeito a registro, matrícula ou licenciamento no Estado”. Nenhuma inconstitucionalidade há em estabelecer, para fins tributários, que o fato gerador do IPVA ocorre no mesmo lugar em que a lei geral de trânsito estabelece como sendo o local em que será encontrado o proprietário do veículo para o cumprimento de obrigações decorrentes do exercício desta propriedade.

A Constituição, em seu artigo 155, II, atribui aos estados competência para instituir o IPVA e delimita, de antemão, a hipótese de incidência do imposto, que recairá sobre o signo representativo de riqueza traduzido pelo fato de alguém (que será o sujeito passivo da exação) ser proprietário de veículo automotor (critério material da hipótese de incidência). Para a individualização do sujeito ativo da obrigação tributária, portanto, é necessário que se observe detidamente o aspecto material da hipótese de incidência extraída da Constituição (ser proprietário de veículo). Nesse sentido, o aspecto espacial da norma impositiva deve estar onde está o proprietário do veículo! É lá que, na ausência de especificação em sentido contrário, é o local onde acontece o fato gerador.

Assim, por tudo que foi exposto, pode-se verificar que, de certa forma, é fictício o problema lançado pela recorrente, que afirma que o estado estaria alterando o critério espacial da norma de incidência tributária que, segundo ela, estaria expresso na Constituição como sendo o local do licenciamento do veículo. É que, como visto, o registro (ou o licenciamento anual) do veículo automotor deve necessariamente, por determinação cogente constante de lei federal, coincidir com o local de domicílio ou residência de seu proprietário.

Contudo, ao proferir seu voto, o ministro relator acolheu as alegações da recorrente para, com base no que dispõe o artigo 158, III, da Constituição, estabelecer que, por pertencerem aos municípios 50% do produto da arrecadação do imposto do estado sobre a propriedade de veículos automotores licenciados em seu território, o local licenciamento definiria, inarredavelmente, o local da ocorrência do fato gerador e, por conseguinte, a sujeição ativa do IPVA. Todavia, e por pura questão de coerência interpretativa, somente é válida a dicção que extraia do aludido dispositivo constitucional o comando segundo o qual pertencerão aos municípios 50% do produto da arrecadação do imposto do estado sobre a propriedade de veículos automotores regularmente licenciados em seu território. O critério espacial da norma de incidência, a definir o sujeito ativo do tributo, continuará sendo o licenciamento, mas o licenciamento regular, procedido em conformidade com as normas federais de trânsito. Apenas isso! O irregularmente licenciado, por razões óbvias, não pode ser atribuído ao município que licenciou. A fraude deve ser evitada e arredada pelo intérprete, e não convalidada.

A propósito, tal possibilidade de fraude é, inclusive, prevista pelo próprio CTB, que prescreve, em seu artigo 242, ser infração gravíssima, sujeita a multa, “fazer falsa declaração de domicílio para fins de registro, licenciamento ou habilitação”. Diante da fraude à lei (tributária), deve-se aplicar o consequente da norma fraudada (lei tributária mineira). Em outras palavras, quando a lei (tributária) é fraudada, por meio de negócio indireto ou artifício, cabe ao intérprete aplicar o consequente da norma fraudada! Nesse caso, aplica-se a lei mineira fraudada, afastando, assim, a fraude à lei. Existe um ilícito previsto no CTN, mas não se está diante de um ilícito tributário, mas de conduta em fraude à lei tributária (que produz um resultado com certo matiz antijurídico).

Como expõe Edilson Pereira Nobre Júnior, não obstante o artigo 166, caput, do Código Civil consigne que é nulo o negócio jurídico praticado em fraude à lei, essa não é a consequência principal do reconhecimento do comportamento fraudador. Consoante recorda o autor, retomando os ensinamentos de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery, em primeiro lugar está a aplicação da lei defraudada porque “toda vez que a ordem jurídica, para a hipótese de sanar violação de norma imperativa, refere-se a um resultado específico, este deverá preponderar sobre a nulidade” (NOBRE JÚNIOR, 2014, p. 139)[6]. Enfim, na fraude à lei, em regra, deve-se aplicar a norma fraudada. No caso em tela, deve-se aplicar a lei tributária mineira! Apenas assim interpretando pode-se afastar a fraude à lei.

Recolocando a questão nos trilhos, pode-se afirmar com firmeza que a discussão, como bem pontuou o ministro Alexandre de Moraes, não deve ser verdadeiramente acerca de uma inconstitucionalidade, mas sobre uma fraude! Não há conflito de competência e muito menos inconstitucionalidade a serem dirimidos. A questão é grave e merece reflexão porque pode inaugurar uma guerra fiscal entre os estados. Por isso, o recurso extraordinário não pode prosperar.


[1] É sabido que, em Goiás, como em uma liquidação de loja de departamentos, o primeiro ano de IPVA é grátis para veículos lá emplacados e adquiridos.
[2] Essa questão também está afeta a julgamento pelo STF, nos autos das ADIs 4.376/SP, da relatoria do ministro Gilmar Mendes, e 4.612/SC, de relatoria do ministro Dias Toffoli.
[3] O voto foi acompanhado pelos ministros Luiz Edson Fachin, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello.
[4] Quanto aos fatos, é ainda importante destacar que restou definitivamente fixado pelo acórdão recorrido que “não há elementos nos autos que evidenciem ter a autora outras filiais em outras Unidades da Federação, senão, apenas, em Minas Gerais, de modo que deve recolher o imposto no local de sua sede. Portanto, é seu dever manter o registro e licenciamento do veículo no Estado de Minas Gerais. Se assim não o fez, está, por certo, cometendo infrações de natureza fiscal, cabendo a ela regularizar a situação”.
[5] As ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia acompanharam a divergência.
[6] Cf. NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Fraude à lei. Revista da AJURIS, v. 41, n. 136, p. 125–146, 2014.

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