Artigo do advogado-geral do Estado publicado no site Conjur
O Brasil, desde sua independência, sempre foi gerido de forma centralizada. Se a coroa brasileira buscou manter a unidade do país centralizando o poder nas mãos do rei, o governo militar deixava em Brasília todas as decisões da República. A Constituição de 1988, entretanto, buscando romper com essa tradição, formatou uma verdadeira federação. Como pedra de fecho, colocou o princípio federativo como cláusula pétrea, portanto, o equilíbrio federativo não pode ser rompido sequer por emendas constitucionais. Nesse compasso, o texto constitucional estabeleceu, exaustivamente, as competências de cada um dos entes, bem como as fontes de receitas necessárias (tributos e transferências). Vigente a Constituição de 1988, sob sua égide começam a funcionar as pessoas políticas. Estabelecidas as atribuições e firmadas as fontes de recursos necessários, poderia, finalmente, o Brasil ser uma federação! Assim foi firmado o pacto federativo.
Para a tecnoburocracia financeira da União, a nova Constituição foi um choque, porque, em última análise, descentralizou poder. O Brasil não deveria mais ser um gigante comandado por um grupo encastelado em Brasília, mas deveria ser uma federação, com pessoas políticas autônomas. Vale lembrar que a Constituição de 1988 surgiu em um contexto de redemocratização do país, portanto, a separação vertical dos poderes vinha em sintonia com o ideal democrático. A propósito, um governo centralizado, em um país de mais de 200 milhões de habitantes e com dimensões continentais, jamais pode estar próximo do povo e ser democrático.
Menos de oito anos depois, o pacto constitucional começou a ser arranhado. A nova Carta, porém, previu mecanismos que garantissem uma sociedade democrática. É o princípio federativo que deve garantir o intento democrático-descentralizador da Constituição de 1988. Um primeiro golpe ao modelo foi dado pela Lei Kandir (LC 87/96).
Originalmente, a Constituição de 1988 estabelecia em seu artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea “a” que o ICMS não deveria incidir “sobre operações que destinem ao exterior produtos industrializados, excluídos os semielaborados definidos em Lei Complementar”. No pacto constitucional firmado, assim, os estados deveriam contar, para fazer frente às suas atribuições, com o ICMS incidente sobre produtos importados, bem como com o imposto incidente sobre os produtos primários e semielaborados que fossem exportados. Entretanto, a LC 87/96, pilotada pela tecnoburocracia da União, determinou a desoneração das exportações de forma ampla. O incentivo dado ocorreu às custas da arrecadação estadual. A União, para não desvalorizar o real e reverter a queda das exportações, empurrou a conta para os estados, retirando dos entes parcela da arrecadação tributária. Foi por isso que os legisladores buscaram resguardar as perdas (que acabaram acontecendo).
A justificativa para a proposição do Projeto de Lei Complementar 95/1996, que resultou na chamada Lei Kandir, objetivava “compensar” as perdas de arrecadação. A propósito, foi a previsão das transferências e os potenciais benefícios aos estados o argumento usado para convencer os governadores a apoiarem a aprovação da lei.
Originalmente, o PLP 95/1996 pretendia desonerar apenas a exportação de produtos semielaborados. Por isso, o artigo 19 original previa expressamente que “a União compensará financeiramente os Estados e o Distrito Federal pela perda de arrecadação do imposto sobre circulação de mercadorias e serviços decorrente da revogação da LC 65/91”. Após ter assumido o Ministério do Planejamento, pouco depois da propositura do PLP 95/1996, Antônio Kandir trabalhou pela aprovação de uma versão mais ampla da desoneração, envolvendo também produtos primários. Sob pressão da União, a votação ocorreu a toque de caixa[1].
A nova regra buscou incentivar as exportações, entretanto, além de provocar o fenômeno da “desindustrialização”, feriu mortalmente a fonte de recursos dos estados que se dedicam à atividade de exportação de produtos primários.
O governo federal tinha duas opções: alargar a esfera de incidência do imposto estadual sobre o consumo (compensando as perdas de arrecadação) ou transferir recursos da União[2]. A Lei Kandir, em seu artigo 31, optou por criar um sistema de entrega de recursos financeiros da União para os estados e municípios. Porém, a confusa sistemática de repasses proposta não compensou efetivamente os valores que os estados deixaram de arrecadar nem durante o período de vigência da LC 87/96 (até 2000, por superveniência da LC 102/2000). De acordo com os cálculos do Confaz, em 1997, as transferências realizadas pela União cobriram apenas 37,3% das perdas; em 1998, somente 40,8%; e, em 1999, 55,4%[3].
Assim, foram os estados que pagaram a conta do Plano Real. Porém, a União alargou a incidência dos impostos sobre o consumo quando criou contribuições (não compartilhadas) e instituiu um verdadeiro ICMS federal (PIS e Cofins). Se não compensou os estados, por outro giro, avançou sobre os impostos sobre o consumo (da competência estadual). Foi assim que a segunda metade da década de 1990 inaugurou uma nova fase do federalismo fiscal brasileiro, com o “fortalecimento do poder central”[4].
A tecnocracia da União nunca absorveu os mandamentos democrático-decentralizadores da Constituição de 1988 e se ressentiu da lógica federalista de descentralização do poder. No caso da PIS/Cofins, para exemplificar, a União conseguiu ampliar a base de cálculo do imposto estadual deixando para si o produto da nova arrecadação; entretanto, desvinculou 40% dessa arrecadação. Em 2015, a arrecadação tributária nacional correspondeu a 32,42% do PIB. Destes, 68,39% corresponderam à arrecadação da União; 25,40%, à estadual; e 6,21%, à municipal. O ICMS respondeu por 6,76% do PIB, e o PIS/Cofins, a 4,33%. Detalhe importante é que a arrecadação total dos estados foi de 8,23% do PIB, o que demonstra a enorme dependência do ICMS.
O governo mineiro vem pleiteando um encontro de contas entre os créditos relativos às perdas da Lei Kandir e os débitos referente à dívida com a União. A questão, que mereceu os encômios do empresariado e da classe política, vem enfrentando severa resistência da tecnoburocracia federal.
Ocorre que, mesmo para os que entendem que a compensação das perdas com a desoneração das exportações deveria viger apenas enquanto perdurasse a sistemática de transferências segundo o chamado “seguro-receita”[5], dúvidas não restam no sentido de que a EC 42/2003 determinou a prorrogação da vigência das transferências e mandou que fossem editadas novas regras para apuração dos repasses de modo a efetivamente compensar as perdas ocorridas com a desoneração.
O artigo 91 do ADCT impôs um marco temporal para os repasses (parágrafo 2º) e, sobretudo, em seu parágrafo 3º, estabeleceu o dever de o Congresso Nacional legislar. O artigo, com a redação dada pela EC 42/2003, deixa claro que a efetiva compensação deveria ser estabelecida em lei complementar a ser elaborada e que os repasses na forma da Lei Kandir (com a redação dada pela LC 115/2002) só poderiam perdurar pelo tempo necessário para se elaborar a nova lei. A propósito, a LC 115/2002 estabelece repasses até o exercício de 2006, portanto, a EC 42/2003 firmou um período de, no máximo, três anos para o Congresso Nacional fazer uma nova lei complementar.
Não foi por outra razão que, na ADO 25, em 30/11/2016, o STF, à unanimidade, decretou a inconstitucionalidade por omissão, ou seja, firmou que houve uma omissão lesiva aos estados por parte da União. Trata-se de decisão extremamente relevante tanto por seu conteúdo de mérito quanto pelas suas implicações processuais. Explica-se: além de significar um marco para que se retome o equilíbrio das relações federativas, representou uma virada no entendimento quanto aos efeitos do julgamento de ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, não apenas por ter declarado a omissão e determinado prazo para a sua resolução, mas principalmente por restar estabelecido que caso a norma prevista no caput do artigo 91 não seja editada no decurso de um ano, caberá ao TCU fixar o valor do montante a ser transferido aos estados e ao DF.
Dúvidas não restam, portanto, no sentido de que deve a União repor as perdas pretéritas dos estados. Evidentemente, se a União avançou por sobre a competência tributária estadual (nos termos do pacto constitucional) ao criar contribuições que se traduzem em um verdadeiro alargamento da base dos impostos sobre o consumo, por certo, deve restaurar o equilíbrio federativo e compensar os estados pelas perdas sofridas com a desoneração da exportação dos produtos primários e semielaborados.
Por outro giro, os técnicos federais entendem que o valor apresentado pelo estado deixou de considerar os efeitos macroeconômicos positivos que a desoneração das exportações exerceu sobre setores da economia, gerando crescimento econômico e, consequentemente, da base de arrecadação dos tributos. O argumento, com a devida vênia, não tem o menor cabimento. Como afirma Gilberto Bercovici[6], desde 1964, e de modo acelerado a partir dos anos 1990, o Brasil passou por uma especialização regressiva, “com a perda do dinamismo industrial, cada vez com maiores acréscimos de conteúdo importado e redução de inovações tecnológicas, chegando, em alguns setores, à desindustrialização”. Como, afinal, poderia um estado exportador que viu suas exportações serem desoneradas ter aumentada sua receita tributária? Como ressabido, a desoneração das commoditiespromoveu um grave processo de desindustrialização que levou ao colapso a indústria mineira e a receita do ICMS.
Os técnicos federais, entendem, ainda, que o “acerto de contas” não procede porque a União transferiu, desde 2004, além dos recursos previstos na Lei Kandir, os recursos do Auxílio Financeiro para Fomento das Exportações (FEX), conforme determinado por medidas provisórias. Nessa toada, afirmam, também, que o “acerto de contas” deve considerar os repasses do IPI-exportação aos estados[7]. Mais uma vez, rogando vênia, entendemos que tais afirmativas não fazem sentido.
O FEX foi instituído em 2004, por meio da MP 193/2004, para “estimular os entes federados a contribuírem com o esforço exportador”[8]. Trata-se de uma transferência de recursos não vinculados sem qualquer regulamentação permanente. Ano após ano, o valor a ser distribuído é incluído na LOA, e é editada uma MP estabelecendo o montante de repasse que é dividido de acordo com estipulações do Confaz. Parece que, em virtude das absurdas distorções provocadas no pacto federativo, a União criou uma espécie de “mesada”. Não há qualquer garantia de que as transferências venham a ocorrer, tampouco há segurança quanto ao seu valor (nos anos de 2013 e 2014, por exemplo, não houve previsão orçamentária do FEX). Cumpre registrar, porém, que os cálculos apresentados pelos estados consideraram todos os repasses do FEX realizados desde 2004!
A tecnoburocracia federal informou que os estados não teriam muito a receber em decorrência das transferências de 10% da arrecadação do IPI, proporcionalmente ao valor das respectivas exportações de produtos industrializados. Não faz o menor sentido considerar os valores dos repasses constitucionais (artigo 159, inciso II) como parte da compensação pela desoneração do ICMS! Os repasses do IPI estão previstos, desde de 1988, no pacto constitucional, portanto não possuem qualquer relação com a Lei Kandir de 1996. As transferências do IPI referem-se apenas a produtos industrializados — beneficiados com a imunidade do ICMS pelo constituinte originário (e não pela Lei Kandir). O dispositivo constitucional reforça a ideia de que a União deve mitigar as perdas sofridas pelos entes menores em seu esforço exportador, tanto assim que previu repasses com relação aos produtos industrializados.
O que fica evidenciado é que a União dispõe de créditos com os estados e possui uma dívida com relação às perdas acumuladas com a desoneração da Lei Kandir, que nunca foram devidamente compensadas. O que ficou claro na decisão do STF é que autonomia financeira e política dos estados foi severamente arranhada.
Enfim, por maior que seja a resistência da tecnoburocracia federal, a democracia reclama que o equilíbrio federativo seja imediatamente restaurado! Está na mão dos parlamentares os rumos do federalismo! Está na mão do Congresso Nacional o futuro do Brasil! No entrechoque entre o poder político e o poder burocrático, que vença a democracia!
[1] Desde a publicação da matéria na Câmara dos Deputados até a sanção decorreram três meses.
[2] Nesse sentido, PELLEGRINI, Josué Alfredo. Dez Anos da Compensação Prevista na Lei Kandir: conflito insolúvel entre os entes federados? Brasília: ESAF, 2006, Monografia premiada em 1º lugar no XI Prêmio Tesouro Nacional – 2006, Brasília, p. 21.
[3] Segundo estudo feito pela Cotepe, considerando os valores do imposto que deixou de ser cobrado nas exportações de produtos primários e semielaborados, bem como a parcela do ICMS que deixou de ser cobrada nas operações com ativo permanente, descontados dos valores repassados pela União a título de ressarcimento ou de auxílio as exportações.
[4] Nesse sentido, PELLEGRINI, Josué Alfredo. Dez Anos…, cit. p. 9-10.
[5] A Lei Kandir é de 1996, e menos de quatro anos depois de sua promulgação sobreveio a LC 102/2000, para assegurar os repasses até, pelo menos, o ano de 2002. Não tendo sido suficientes as mudanças promovidas por este último diploma, foi aprovada a LC 115/2002, dois anos depois, para prorrogar o período de repasses até 2006.
[6] Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-jul-10/estado-economiabrasil-continua-politica-acumulacao-primitiva-capitais>. Acesso em: 19/6/2017.
[7] Cf. Estados e municípios podem não ter compensação esperada por perdas com Lei Kandir, admitem deputados. 13/6/2017. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/RADIOAGENCIA/536316-ESTADOS-E-MUNICIPIOS-PODEM-NAO-TER-COMPENSACAO-ESPERADA-POR-PERDAS-COM-LEI-KANDIR,-ADMITEM-DEPUTADOS.html. Acesso em: 19/6/2017. “Em audiência pública da comissão (nesta terça-feira), representante da Confederação Nacional dos Municípios estimou que as prefeituras perderam cerca de R$ 170 bilhões entre 2006 e 2015 com a Lei Kandir. O deputado Carlos Melles, do Democratas de Minas Gerais, que participou da reunião na Fazenda, alertou, no entanto, para o risco de uma ‘falsa expectativa’. Eu vi no secretário-executivo Eduardo Guardia e na secretária (do Tesouro Nacional) Ana Paula Vescovi, enfim, todos do Ministério da Fazenda uma explicação serena e segura de que estávamos discutindo uma coisa que não existia. Dadas as modificações que o Supremo já fez, dadas as reduções do IPI (10% da arrecadação do IPI integra o Fundo de Exportação) e dada uma análise mais cuidadosa parece que nós não temos muito o que receber não, nos nossos estados”.
[8] Cf. Exposição de motivos.