Texto sobre a aplicação do novo CPC ao Sistema dos Juizados Especiais

Portal Migalhas divulga artigo do procurador do Estado Fernando Salzer

Juizados especiais – obrigatoriedade de observância pelos juízes das teses firmadas pelo STJ no julgamento de recurso especial repetitivo

A partir da vigência do novo Código de Processo Civil (CPC), iniciou-se grande discussão a respeito da aplicação de suas normas ao Sistema dos Juizados Especiais.

Ante tal polêmica, o Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE), na primeira oportunidade, editou enunciado cível contendo a seguinte tese:

ENUNCIADO 161 – Considerado o princípio da especialidade, o CPC/2015 somente terá aplicação ao Sistema dos Juizados Especiais nos casos de expressa e específica remissão ou na hipótese de compatibilidade com os critérios previstos no art. 2º da lei 9.099/95.”

Merece destaque o fato de que os enunciados expedidos pelo FONAJE, como o acima, devem ser analisados e interpretados com cautela, pois os mesmos não possuem conteúdo vinculante, tendo, no máximo, a natureza jurídica de mera recomendação doutrinária, uma vez que são forjados unilateralmente, sem contraditório, com uma boa dose de parcialidade e viés um tanto corporativista, no encontro anual dos Juízes que atuam no âmbito do Sistema dos Juizados Especiais.

Outro ponto que não pode passar desapercebido é que a jurisdição no Sistema dos Juizados Especiais é cometida a Juízes, integrantes do Poder Judiciário, que tem o dever de “cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais”1.

Muito bem. Se o próprio FONAJE entende que terão aplicação ao Sistema dos Juizados Especiais as normas do CPC que expressa e especificamente assim o prevejam, bem como que a jurisdição em tal sistema é cometida a Juízes, indene de dúvidas se mostra a obrigatoriedade da observância e respeito, no âmbito dos Juizados Especiais, das teses firmadas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento de Recurso Especial (REsp) Repetitivo.

O art. 927, III, CPC, é expresso ao determinar que “os juízes e os tribunais observarão os acórdãos (…) em julgamento de recursos (…) especial repetitivos”. A regra é cristalina, não havendo esforço hermenêutico que consiga excluir de tal comando os Juízes que atuam no Sistema dos Juizados Especiais.

Além disso, o art. 985, I, do mesmo Codex faz menção expressa à aplicação das teses jurídicas proferidas em julgamentos de casos repetitivos (art. 928, I e II, NPC) “a todos os processos a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais”, sendo certo que o STJ possui jurisdição em todo o território nacional.

A aplicação e a consequente obrigatoriedade de observância pelos Juízes que atuam nos Juizados Especiais das teses firmadas pelo STJ no julgamento de REsp repetitivo é tão irrefutável, que tal assertiva é expressamente reconhecida pelo FONAJE em vários enunciados cíveis, conforme se vê abaixo, não podendo tal aplicação ser interpretada apenas de forma seletiva, só quando for conveniente à magistratura.

ENUNCIADO 101: O art. 332 do CPC/20152 aplica-se ao Sistema dos Juizados Especiais; e o disposto no respectivo inc. IV também abrange os enunciados e súmulas de seus órgãos colegiados.

ENUNCIADO 102: O relator, nas Turmas Recursais Cíveis, em decisão monocrática, poderá negar seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em desacordo com Súmula ou jurisprudência dominante das Turmas Recursais ou da Turma de Uniformização ou ainda de Tribunal Superior, cabendo recurso interno para a Turma Recursal, no prazo de cinco dias.

ENUNCIADO 103: O relator, nas Turmas Recursais Cíveis, em decisão monocrática, poderá dar provimento a recurso se a decisão estiver em manifesto confronto com Súmula do Tribunal Superior ou Jurisprudência dominante do próprio juizado, cabendo recurso interno para a Turma Recursal, no prazo de 5 dias.

Demonstrada de forma cabal a aplicação e obrigatoriedade de observância das teses firmadas pelo STJ, no julgamento de REsp repetitivo, no âmbito do Sistema dos Juizados Especiais, dúvidas não restam de que havendo colisão ou divergência entre tais teses e os entendimentos expedidos, via enunciados, pelo FONAJE, as primeiras deverão sempre prevalecer, em qualquer hipótese.

Conveniente também ressaltar que a invocação, como se palavras mágicas fossem, dos princípios da simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, insertos no art. 2º da lei 9.099/95, não tem o condão de afastar as garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes. Havendo conflito entre tais princípios e garantias, realizada a ponderação entre eles, deverá sempre prevalecer a interpretação que dá maior efetividade às garantias constitucionais em detrimento até mesmo da aplicação dos mencionados princípios legais.

Prosseguindo, atualmente existem vários casos nos quais os enunciados do FONAJE contrariam tese já firmada pelo STJ no julgamento de REsp Repetitivo. Para ilustrar tal assertiva, abaixo serão mencionados dois exemplos.

O enunciado cível 13 do FONAJE afronta e contraria a recente tese firmada pelo STJ no julgamento do tema/repetitivo 379, conforme se constata abaixo:

FONAJE: ENUNCIADO 13: Nos Juizados Especiais Cíveis, os prazos processuais contam-se da data da intimação ou da ciência do ato respectivo, e não da juntada do comprovante da intimação.

STJ: TEMA/REPETITIVO 379: Nos casos de intimação/citação realizadas por Correio, Oficial de Justiça, ou por Carta de Ordem, Precatória ou Rogatória, o prazo recursal inicia-se com a juntada aos autos do aviso de recebimento, do mandado cumprido, ou da juntada da carta. (REsp 1632777/SP. Corte Especial. Min. Napoleâo Nunes Maia Filho. DJe 26/05/2017).

Assim, aferida a divergência de entendimento, prevalece, em qualquer hipótese, a tese firmada pelo STJ, sendo considerado tacitamente revogado o enunciado cível 13 do FONAJE.

A tese firmada pelo STJ, acima exposta, diga-se de passagem, também é a que melhor se coaduna com a disposição legal contida no art. 6º3 , da lei 12.153/09, c/c art. 1.046, §4º4 , NCPC.

Outro exemplo de colisão entre entendimento do FONAJE e tese firmada pelo STJ é extraído da comparação entre os seguintes verbetes:

FONAJE: ENUNCIADO 120 – A multa derivada de descumprimento de antecipação de tutela é passível de execução mesmo antes do trânsito em julgado da sentença.

STJ – TEMA/REPETITIVO 743: A multa diária prevista no § 4º do art. 461 do CPC, devida desde o dia em que configurado o descumprimento, quando fixada em antecipação de tutela, somente poderá ser objeto de execução provisória após a sua confirmação pela sentença de mérito e desde que o recurso eventualmente interposto não seja recebido com efeito suspensivo. (REsp 1200856/RS. Órgão Julgador: Corte Especial. Relator: Ministro Sidnei Beneti. Dje 17/0/2014).

Destarte, em homenagem à garantia constitucional do devido processo legal, também nesta situação a única alternativa é reconhecer a prevalência da tese firmada pelo STJ, considerando-se revogado tacitamente o enunciado cível 120 do FONAJE.

Apesar das conclusões acima serem irrefutáveis, caso algum Juiz, de forma teratológica, entenda pela prevalência do enunciado FONAJE em detrimento da aplicação da tese firmada pelo STJ no julgamento de REsp Repetitivo, deverá o magistrado, obrigatoriamente, explicitar os motivos que o levaram a afastar o entendimento consolidado pelo Tribunal Superior, sob pena de nulidade da decisão, conforme previsto no art. 489, §1º, VI e §2º5 , NCPC.

Para que não surjam alegações e entendimentos oportunista, cabe ressaltar que a única interpretação possível a ser dada ao enunciado cível 162 do FONAJE, abaixo transcrito, é que tal verbete apenas deixa explicitado a não aplicação, ao Sistema dos Juizados Especiais, da regra constante no inciso I, do art. 489, NCPC, sendo os demais incisos e parágrafos de tal artigo plenamente aplicáveis, uma vez que a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais é princípio constitucional (art. 93, IX, CRFB6 ), que não pode ser afastado por lei, além de também ser, devido a sua irrefutável importância, alçada à qualidade de norma fundamental do processo civil brasileiro (art. 11, NCPC 7).

ENUNCIADO 162 – Não se aplica ao Sistema dos Juizados Especiais a regra do art. 489 do CPC/2015 diante da expressa previsão contida no art. 38, caput, da lei 9.099/95.

Por fim, demonstrada a aplicação e a necessidade de observância no Sistema dos Juizados Especiais das teses firmadas pelo STJ no julgamento de REsp repetitivo, clarividente fica que, na eventualidade de afronta à norma contida no art. 927, III, CPC, caso tal ofensa persista após esgotadas as instâncias ordinárias previstas no rito processual de tal Sistema, a parte interessada poderá, antes do trânsito em julgado da respectiva decisão, arrimada no art. 998, I, II e IV8 , CPC, interpor reclamação perante ao STJ, a fim de preservar a competência e garantir a autoridade de tal Tribunal9 , bem como objetivando a prevalência do princípio da segurança jurídica, evitando, deste modo, a proliferação decisões contraditórias nas instâncias ordinárias inferiores.

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1 LC 35/1979. Art. 35, I.
2 NCPC. Art. 332. Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar:
(…)
II – acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
3 lei 12.153/2009. Art. 6o Quanto às citações e intimações, aplicam-se as disposições contidas na Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil.
4 NCPC. Art. 1.046. (…). §4º As remissões a disposições do Código de Processo Civil revogado, existentes em outras leis, passam a referir-se às que lhes são correspondentes neste Código.
5 NCPC. Art. 489. (…).
§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (…) VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
§ 2o No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.
6 CRFB. Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
(…)
IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;
7 NCPC. Art. 11. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.
8 NCPC.Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para: I – preservar a competência do tribunal; II – garantir a autoridade das decisões do tribunal; (…); IV – garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência; (…);
9 Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
(…)
f) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões;

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*Fernando Salzer e Silva é procurador do Estado de Minas Gerais

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