A Procuradora do Estado de Minas Gerais e Presidente da Associação dos Procuradores do Estado de Minas Gerais (Apeminas), Célia Cunha Mello, fala sobre a paridade de gênero nas instituições.
- As políticas afirmativas positivas são imprescindíveis, mas se sabe também que desigualdade de gênero é uma construção social há muito cristalizada. Quais outras alternativas viáveis para modificação desse quadro? As escolas teriam um papel relevante nesse sentido?
As políticas afirmativas positivas são imprescindíveis, enquanto for necessário acelerar uma conquista natural de paridade de gênero. Porque, se voltarmos o olhar para a sociedade brasileira, em termos numéricos, percebemos que já existe uma paridade, quantitativa, entre homens e mulheres. Então, seria natural ver refletida essa paridade na gestão das instituições, nos cargos de comando e de liderança, mas não é o que se verifica ainda hoje, em 2022, no Brasil. Isso comprova a necessidade de se atrair, de se fomentar a participação das mulheres, e em reciprocidade, de se exigir que a sociedade abra caminho para as mulheres que queiram cumprir esse mister. De fato, as dificuldades impostas pela sociedade brasileira às mulheres estão muito cristalizadas, e por isso, às vezes, são aceitas, toleradas, e até nos passam despercebidas. Por isso que reputo conveniente que haja divulgação na mídia, que este assunto seja abordado nas escolas e que essa pauta seja objeto de produções culturais, porque esses meios (educação, comunicação e cultura) são capazes de propor à sociedade, coletivamente, essa reflexão, para que consigamos quebrar alguns paradigmas. Deixar a mulher vencer sozinha, para depois aplaudi-la, é pouco. Temos que evoluir como sociedade, começando, em seara profissional, social e doméstica, por dividir igualmente tarefas que possam ser realizadas por ambos os sexos, e que são ‘deixadas’ para as mulheres por pura conveniência machista que permeia o nosso inconsciente coletivo.
- Ainda pensando no papel das escolas, seria possível que o Estado, por meio da LDB, por exemplo, contribuísse para a superação dessas desigualdades, estabelecendo diretrizes a fim de que as unidades escolares promovessem a igualdade de gênero?
Sim. Contudo, não podemos deixar de identificar um toque de discricionariedade na instituição desse tipo de política afirmativa. Reconheço que criar uma política exitosa nesta seara é, no mínimo, complexo. Quem sou eu para falar que é preciso fazer dessa ou daquela forma? Mas, entendo que, ao se fortalecer esse conteúdo na base da formação educacional, os valores igualitários se fixarão de forma originária, e ficarão mais latentes, mais automatizados no comportamento dos brasileiros, evitando alguns deslizes cometidos ainda hoje. Na verdade, vejo que a pauta de paridade de gênero é completamente vazia. Através dela discutimos apenas acesso das mulheres a este ou àquele cargo ou função, quando o nosso foco deveria estar voltado para identificar os problemas e apontar soluções na construção de uma sociedade melhor e mais justa. Embora seja necessário e oportuno se adotar políticas afirmativas de paridade, como meio de acelerar a correção da distorção verificada ainda hoje, temos que superar rapidamente essa discussão para enfrentar os verdadeiros problemas humanitários e sociais que a vida nos impõe.
- Quais efeitos você tem observado a partir das medidas de paridade de gênero, como na OAB?
Já conseguimos observar muitas mudanças. Na base da Advocacia brasileira existe uma paridade numérica de advogados e advogadas, não exata, claro, mas aproximada. Temos registrados na OAB, mais ou menos, a mesma quantidade de profissionais do sexo masculino e do sexo feminino. No entanto, nos cargos de comando da OAB, ainda são raras as mulheres. A entidade foi criada em 1930 e nunca teve uma mulher na Presidência. Em dezembro de 2021, a Ordem não contava com nenhuma mulher no comando das suas Seccionais. Na primeira eleição sob a égide da paridade de gênero, adotada pela OAB nas eleições de 2021, experimentamos um salto significativo de representação com a eleição de cinco mulheres na Presidência das Seccionais de São Paulo (maior Seccional do país), Bahia, Santa Catarina, Mato Grosso e Paraná. Alguns podem reputar que estamos comemorando um número pífio e ainda muito desigual (5 de 27 Secionais), mas foi o resultado imediato da adoção da paridade pela OAB, e, a meu ver, significou um grande avanço na representação da entidade. No Conselho Federal, a OAB alcançou, pela primeira vez, uma composição paritária, com 81 conselheiras. Uma evolução a ser comemorada, eis que em gestões anteriores, o recorde, antes da adoção da paridade na instituição, tinha sido de dezesseis conselheiras federais. Esses números comprovam que política afirmativa de paridade de gênero adotada pela OAB começou a funcionar. Ademais, importante observar que o critério de paridade de gênero na OAB não apenas abriu espaço para as mulheres, mas contribuiu para oxigenar os seus quadros. Em âmbito federal, e também nas Seccionais, podemos verificar uma continuidade e/ou repetição de nomes na composição da gestão da entidade, o que acabou sendo modificado com a chegada de novos representantes, no caso, novas representantes. Então, a meu ver, a paridade acabou contribuindo com a própria democracia na Ordem dos Advogados do Brasil.
- O fato é que foi necessária uma medida externa e impositiva (embora aprovada por votação) a fim de que, agora, comece a se perceber maior participação feminina em cargos de liderança, mas especialmente em instituições consolidadas como OAB, Judiciário etc. Qual tem sido a receptividade às novas gestoras/dirigentes e quais as principais dificuldades que elas ainda enfrentam após ascender aos cargos de liderança?
A paridade veio para quebrar o ritmo do sistema, na medida em que a adoção de política afirmativa acelera o resultado social almejado, ampliando a participação feminina nos cargos de gestão e de liderança. Não precisamos esperar mais 70 ou 100 anos. Realmente, em percentual ainda inferior à nossa expectativa, no meio jurídico, já percebemos uma maior participação das mulheres em cargos de liderança, na OAB, nos tribunais, nas Defensorias Públicas, Procuradorias, e, neste ponto o Ministério Público de Contas de Minas Gerais saiu na frente, com a Dra. Elke Moura, na Procuradoria-Geral da instituição. Mas, respondendo à parte final da sua indagação, penso que as mulheres, que hoje já ocupam cargos de liderança, não encontram qualquer dificuldade para gerir ou comandar as respectivas carreiras e/ou órgãos. Isso porque liderança não tem nada a ver com gênero. A mulher que rompeu as resistências sociais e profissionais e que já está ocupando um cargo de liderança, descobriu, lá no início da sua caminhada, que sua condição feminina não a impede de liderar ou comandar. Por isso, não consigo apontar dificuldades específicas para mulheres que ascenderam profissionalmente. Ao contrário, estamos testemunhando gestões femininas exitosas, mais plurais, criativas e inovadoras, com entrega de resultados, que é, finalisticamente, o que importa. Tanto, que a busca por paridade não é mais uma luta exclusivamente feminina. Muitos homens já aderiram a esse propósito, exatamente porque finalmente reconheceram que uma composição colegiada equitativa de gênero, e com alternância de homens e mulheres no poder, enriquece o debate e fortalece a representação e a própria democracia. De fato, ideais paritários de gênero não encerram, em si, nenhum propósito de conflito ou de antagonismo com os homens. Queremos ocupar, de forma paritária, os espaços de poder. Homens e mulheres podem compartilhar o caminho. Não é mais possível barrar a participação feminina. Liderança, contudo, é aptidão pessoal, independentemente do gênero.
- Se a paridade de gênero já é desafiadora, certamente é ainda maior e mais difícil para as mulheres negras. Considerando o viés de interseccionalidade que necessariamente tem de atravessar medidas em prol da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres, quais as ações você destaca com essa abordagem direcionada às mulheres negras nos cargos de poder/liderança?
Posso falar de paridade de gênero, porque sou mulher, mas não sou negra. Portanto, sobre paridade de raça, me limito a afirmar que nossa evolução social vai se consolidar com mais mulheres no comando das entidades e se essas mulheres forem negras, tanto melhor, porque nada é mais poderoso, em eficácia, do que a concentração de poder de decisão nas mãos de quem já experimentou a violação e restrições de seus direitos. Para terminar, encerro dizendo que o machismo, além de subjugar e dificultar a vida das mulheres, repercute negativamente na vida dos próprios homens. Não se iludam, do alto de alguns privilégios que lhes são assegurados, reverberam ônus que os impedem de chorar em público, de externarem seus medos, inseguranças e dores; que os colocam na condição de eternos provedores, exigindo dos homens uma performance inatingível para os tempos atuais. Por exemplo, o desemprego do homem é visto, socialmente, com uma crítica pejorativa muito superior à experimentada pela mulher que esteja, temporária ou definitivamente, fora do mercado de trabalho. Enfim, machismo é atraso e não ajuda ninguém.
*A entrevista foi concedida para o informativo eletrônico do Ministério Público de Contas de Minas Gerais, Edição n° 19 de abril de 2022.