No dia 26 de abril, o presidente da Anape, Vicente Braga, participou da primeira audiência pública realizada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados para debater a proposta de Reforma Administrativa (PEC 32/20).
Na oportunidade, Vicente apontou inconstitucionalidades da proposta apresentada pelo Executivo, a começar pelo fim de estabilidade para o funcionalismo público, assim como a obrigação de exclusividade e a criação de cargos de experiência.
Nessa entrevista, o presidente pontua algumas das inconsistências da proposta, levadas ao debate na CCJ. Segundo ele, sob os argumentos de modernização da Administração Pública e economia para os cofres públicos, a reforma administrativa, em análise na CCJ, desconsidera prerrogativas dos servidores públicos. Servidores que, por princípio, trabalham em defesa dos direitos da população brasileira.
Entrevista
APENews – Na audiência pública realizada na CCJ, o senhor afirmou que os servidores públicos em atividade serão alcançados pelo fim da estabilidade. Mas, segundo o texto em análise, a estabilidade desses servidores não estaria garantida?
Vicente Braga – Temos que desmitificar esse ponto. A PEC 32/20 atinge sim os servidores atuais, ocupantes de cargos públicos agora. Basta considerar a proposta de dedicação exclusiva, que está prevista na redação original da PEC. Ela atinge frontalmente todos os servidores públicos de carreiras típicas do Estado. Precisamos sim adotar medidas que garantam maior eficiência do serviço público nacional, mas sem violar as regras básicas da Constituição. Esse é o nosso objetivo: enriquecer o texto da PEC apresentado pelo governo federal, contribuindo para a criação de mecanismos de prevenção e de correção de distorções para punir desvios de conduta por parte de qualquer servidor, sem ferir prerrogativas inerentes aos cargos.
AP- O senhor apontou quatro pontos da PEC que violam a Constituição Federal. Quais são eles?
VB – O primeiro é o fim da estabilidade. Nesse momento tão importante do nosso país, temos que buscar o fortalecimento das instituições e não a fragilização delas. A prerrogativa da estabilidade pertence ao cargo ocupado e não a um servidor que possa vir a ter más intenções. Aquele servidor que não esteja cumprindo com as suas atribuições, deve, sim, responder a uma sindicância administrativa, a um processo disciplinar e, se for esse o entendimento da instituição processante, que ele seja retirado do serviço público. Porque um mau servidor é um mal para a sociedade. É importante separar o joio do trigo. Temos também excelentes servidores públicos que defendem as instituições e fazem um trabalho exemplar, justamente, por causa da estabilidade. Precisamos defender o Estado Democrático de Direito e não se pode falar em Estado Democrático de Direito com instituições fragilizadas.
AP – Para a população, defender prerrogativas do servidor público não seria o mesmo que defender privilégios?
VB – Não queremos prerrogativas que não sejam legítimas. As prerrogativas pertencem à sociedade, pertencem ao cargo que ocupamos. Elas não pertencem à pessoa física do servidor. Não se pode admitir que a estabilidade seja usada como um escudo ao mau servidor. Ela é sim um escudo para blindar o cargo do servidor de qualquer interesse ilegítimo por parte de quem quer que seja: cidadão, gestor ou superior. Seja quem for. Não podemos acreditar que o fim da estabilidade será um benefício para o país. Ao contrário. O fim da estabilidade será uma porteira aberta para mandos, desmandos e atos de corrupção. Temos que blindar o cargo ocupado pelo servidor público contra interesses políticos não republicanos.
AP – A desatualização profissional e a baixa qualidade dos serviços são argumentos usados para o fim da estabilidade. Como o senhor avalia essas críticas?
VB – Do mesmo modo que estimulamos o servidor público a estudar muito na realização do concurso público, devemos incentivá-lo para que se mantenha atualizado durante o exercício das suas contribuições, durante os seus 35 anos de serviço público, por exemplo. Não podemos deixar, realmente, que ele adormeça sobre a cadeira, mas os gestores têm essa responsabilidade. Têm de exigir, correr atrás, incentivar a especialização, a modernização. E não simplesmente acabar com a estabilidade. Um bom caminho é o fortalecimento dos órgãos de controle, dos órgãos de fiscalização, como uma CGU, para que os servidores sejam avaliados e possam desempenhar a sua função a contento. O cidadão que eventualmente for desrespeitado no serviço público tem que saber a quem e como recorrer. Por isso, é tão essencial o investimento nos órgãos de Ouvidoria.
AP – E quanto à dedicação exclusiva?
VB – É outro ponto que viola a Constituição e afronta totalmente o servidor público, inclusive, o atual. A dedicação exclusiva é um enorme retrocesso, que afeta o ingresso de novos servidores públicos e a manutenção daqueles extremamente qualificados. Exigir que o servidor não exerça outra função, mesmo com compatibilidade de horário, é um claro enfraquecimento das instituições. A livre iniciativa do trabalho é cláusula pétrea. É inconcebível que um servidor público ao escrever um livro ou ministrar uma palestra, por exemplo, disseminando conhecimento, não possa receber direitos autorais ou alguma remuneração. Não tem como isso atrapalhar o seu exercício profissional em sua finalidade. Temos que resgatar aqueles servidores que estão desestimulados, e não jogá-los numa vala e responsabilizá-los pelos males da nossa nação. Temos que estimular as remunerações de performance, temos que acreditar que é possível aplicar, plenamente, a meritocracia no serviço público.
AP – A proposta de criação de vínculos de experiência também não tem sido bem recebida por entidades representativas dos servidores públicos. A que se deve essa resistência?
VB – Na visão da Anape, é um grande retrocesso. Como se pode admitir que um servidor, que ainda não foi aprovado em concurso público, já que o vínculo de experiência passa a ser uma etapa do concurso, venha a praticar atos, por exemplo, de carreiras típicas do Estado? Atos estratégicos, com acesso a informações estratégicas do Estado… Caso esse servidor não seja aprovado nessa etapa, como se dá a manutenção desses atos? Como podemos falar que um servidor, que ainda não tem cargo, vai exercer as prerrogativas do cargo? E como alguém, com vínculo precário, pode desenvolver atividades típicas do Estado, como a de fiscalização, por exemplo? Um auditor da Receita Federal, um procurador do Estado? Essa proposta viola, naturalmente, o princípio da segurança jurídica.
AP – E de que maneira a criação dos cargos de liderança é uma afronta à Constituição?
VB – A partir do momento que se admite a ocupação de cargos de liderança, de chefia, por servidores não aprovados em concursos, sem compromisso com a coisa pública, que não tenham feito juramento de respeitar a Constituição. Não podemos admitir que uma pessoa que não seja um servidor de carreira, que não tenha vínculo com o Estado, avalie um candidato que está exercendo experiência. A criação dos cargos de liderança é uma nova forma de cargos de comissão e pode trazer um aparelhamento do Estado. Esse ponto nos preocupa muito: interesse privado ocupando lugar do interesse público. Funções estratégicas e técnicas são inerentes às atividades típicas do Estado e não podem ser delegadas a investiduras transitórias, devendo ser ocupadas, única e, exclusivamente, por servidores públicos aprovados em concursos públicos. O concurso é a primeira peneira para separar o joio do trigo.
AP – Na audiência da CCJ, o senhor manifestou muita preocupação com os cargos de comissão…
VB – Temos que enfrentar essa questão dos cargos de comissão. Isso sim é uma mazela para o país. Este é um ponto muito preocupante da PEC. Temos que avaliar se o quantitativo de cargos em comissões – que são milhares – é realmente necessário para o desenvolvimento do país ou se está sendo usado somente para atender interesses políticos. Esse ponto deve ser enfrentado. Não pela CCJ, mas pela comissão especial, quando será discutido o mérito da proposta.
AP – Algumas vezes, nesses debates sobre a reforma administrativa, são usados argumentos de que os servidores públicos oneram o Estado sem oferecer contrapartidas como a qualidade do serviço. Como a Anape avalia esse tipo de afirmativa?
VB – O problema vai muito além de falar que boa parte da população é formada por servidores públicos e que eles são culpados por todos os males. Precisamos de um debate profundo sobre o tema, sem atropelos, baseado em números reais da máquina pública. Uma disposição legal, criada alheia à realidade, terá a aplicação comprometida. Será uma lei morta e não atenderá aos anseios da sociedade. Não podemos acreditar na falácia de que o servidor público seja o problema do país. Não representamos nem 5% da população. Comparado com os países nórdicos, que são referência na prestação de serviços públicos, somos pouco representativos junto ao conjunto da população. Finlândia, Suécia, Dinamarca, Noruega… mais de 20% da população desses países é composta por servidores públicos. Os Estados Unidos têm 16% de sua população de funcionários públicos.
AP – O senhor poderia citar um exemplo da importância dos servidores públicos para o Brasil?
VB – Basta voltarmos a março de 2020, quando tivemos o início da pandemia de Covid-19. O Sistema Único de Saúde tem garantido atendimento a todos os brasileiros que não têm condições de pagar um plano de saúde. Quais profissionais têm trabalhado dia e noite na busca de uma cura para essa doença? Quais profissionais têm trabalhado para dar celeridade na aquisição e compra de insumos, remédios e aparelhos, minimizando os efeitos da pandemia e evitando o desvio das verbas públicas? Quem dá legalidade a esses processos? Advogados públicos. Só nessa pandemia, temos milhares de exemplos, assim como em toda a história que construiu o nosso país.
AP – Que mensagem a Anape tem para a sociedade brasileira sobre a reforma administrativa?
A Anape está 100% à disposição do Parlamento e da sociedade para o diálogo. Somos pró-estabilidade para a defesa dos interesses da própria sociedade e pró-Brasil sempre. A reforma do Estado é fundamental, mas ela precisa ser amplamente debatida. O compromisso é pela melhoria dos serviços prestados aos cidadãos. Precisamos, sim, melhorar e modernizar a máquina pública, fortalecendo a nossa democracia e as nossas instituições. Nós, servidores públicos, temos de nos adaptar aos novos tempos, a tecnologias mais eficientes. Não vamos cair no discurso de que o Estado custa muito e oferece pouco. É um argumento que deve ser desfeito. O Estado entrega muito e está, neste momento, salvando vidas. A população nunca precisou tanto da mão do Estado e quem move essa mão são os servidores. Temos que aprimorar o serviço público e não enfraquecê-lo.
AP – O senhor acredita que a sua voz e a das entidades representativas dos servidores públicas serão ouvidas? O senhor acredita que ainda é possível modificar a PEC 32/20, suprimindo pontos negativos para os servidores públicos e para o país?
VB – Com certeza. O Parlamento é o lugar para esse diálogo e agora é a hora. O primeiro passo está sendo dado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), com a abertura para o diálogo e a oportunidade de posicionamento de diversas entidades. Em seguida, na comissão especial, o momento será ainda mais importante porque o texto será analisado ponto a ponto no mérito. Lá temos uma oportunidade real de análise da Administração Pública brasileira, baseada em dados, custos e efeitos negativos e positivos das medidas propostas. Estamos lutando por um amplo debate em todos os níveis do Parlamento para que tenhamos uma reforma justa, transparente, que objetive oferecer um serviço público cada vez melhor à sociedade.
AP – Como os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal podem atuar visando ao fortalecimento da posição da Anape em relação à reforma administrativa?
Neste momento, o crucial para o funcionalismo público é a união de todas as categorias para que sejamos ouvidos, para que a reforma aconteça no Parlamento de forma transparente, sem atropelos. Precisamos derrubar os mitos constantemente reforçados contra os servidores públicos. Nós, Procuradores de Estado, advogados públicos estaduais, que estamos trabalhando diuturnamente para auxiliar os estados no combate à pandemia, precisamos seguir firmes. Nós evitamos, a cada dia, que maus gestores transformem esse contexto em janela de oportunidade para se locupletarem indevidamente. Precisamos mostrar o nosso trabalho, falar sobre isso, participar de audiências, eventos, fóruns. Assim como outros servidores públicos, a nossa função é estender a mão ao país, especialmente neste momento de tanta dificuldade. E temos feito isso com muita competência. A articulação das associações locais é fundamental neste momento. Precisamos da nossa capilaridade para fazer com que a nossa voz chegue a todos os cantos do país, mostrando os efeitos negativos que essa PEC pode causar à sociedade caso seja aprovada como está.