“Loop temporal processual”, SUS e o risco de o “remédio” virar “veneno”

Gustavo Luiz Freitas de Oliveira Enoque

Procurador do Estado de Minas Gerais

 

Há algum tempo venho escrevendo textos para a ConJur[1] fazendo um paralelo entre o “loop temporal”, estrutura de narrativa que aparece em filmes ou histórias em que os personagens são obrigados a viver (e reviver infinitamente!) o mesmo período de tempo (dias, horas etc.), sempre retornando ao início do ciclo no qual estão aprisionados e a forma pela qual tem sido trabalhado o conceito de solidariedade previsto no artigo 196 da Constituição de 1988 e os efeitos materiais e processuais que dele derivam, com enfoque para dissenso existente entre as decisões proferidas pelo STF e decisões proferidas pelos demais órgãos jurisdicionais espalhados pelo País. Daí a expressão “Loop temporal processual” em que o operador do direito, após muito trabalho e retrabalho, percebe que, na verdade, não saiu do lugar.

No último texto, escrito em abril de 2023, terminei com uma mensagem de esperança considerando uma decisão proferida no dia 11.04.2023 pelo Ministro Gilmar Mendes no bojo do RE 1.366.243/SC (Tema 1.234) trazendo para o foco a discussão verdadeiramente fundamental, ou seja, a forma pela qual deverá ser trabalhada a solidariedade passiva prevista no artigo 196 da Constituição de 1988 a partir de uma ótica de aperfeiçoamento (ao invés de “adoecimento”) da política pública de saúde a que tem direito o cidadão.

A decisão é lapidar ao reconhecer que o precedente criado a partir do julgamento dos embargos de declaração no RE nº 855.178/SE (Tema 793) não foi suficiente para trazer segurança jurídica e acabou não sendo observado pela magistratura de uma forma geral, o que, aliás, é intuitivo considerando o reconhecimento de uma nova repercussão geral relativa ao Tema 1234 (reconhecida a repercussão geral relativa ao Tema 1234 para que o STF confira segurança jurídica no que se refere a aplicação do Tema 793):

“A operacionalização dessa tese, porém, não foi exitosa. Interpretações colidentes quanto ao alcance desses parâmetros engendraram inúmeros conflitos de competência entre as Justiças Federal e dos Estados, assim como evidenciaram as deficiências estruturais não apenas do Poder Executivo de cada instância, mas também do próprio Sistema de Justiça.”

Mas longe de reconhecer apenas o problema a decisão em questão apontou um caminho para a solução ao desviar o foco de questões periféricas (legitimidade passiva, competência, litisconsórcio passivo necessário) e lançar luz sobre o que, de fato, tornará a política pública de saúde verdadeiramente acessível para a população sem que para isso o SUS seja “sufocado” e “adoecido”, a saber: “mecanismos, protocolos e fluxogramas necessários para assegurar o acesso efetivo da população a direito fundamental, sem desequilíbrio financeiro e desprogramação orçamentária.”:

“É importante recordar que não estamos a falar aqui em simples interpretação de normas jurídicas ou distribuição de competências judiciais. Há uma política pública a ser aperfeiçoada, em processo que se mostre verdadeiramente estruturante.

Nessa linha, o enfrentamento adequado do tema impõe abordagem que contemple todo o processo de prestação de ações e serviços de saúde pelo Estado brasileiro, desde o custeio até a compensação financeira entre os entes federativos, abrangendo os medicamentos padronizados e os não incorporados pelo Sistema Único de Saúde.

Não basta afirmar quem é responsável pela entrega do medicamento e deve compor o polo passivo em ação judicial, mostra-se imprescindível aprofundar o conceito constitucional de solidariedade, municiando a Federação dos mecanismos, protocolos e fluxogramas necessários para assegurar o acesso efetivo da população a direito fundamental, sem desequilíbrio financeiro e desprogramação orçamentária. É disso que trata este Tema de Repercussão Geral.”

Toda solução que se afastar dessas premissas e importar em desequilíbrio financeiro de um ente em benefício de outro “enfraquece” e “adoece” o SUS e, consequentemente, viola a Constituição. Daí a importância do aceno claro que já foi dado pelo Ministro Gilmar Mendes nas decisões monocráticas proferidas no bojo do RE 1.366.243/SC (Tema 1234).

Com efeito, no voto vencedor proferido pelo Ministro Edson Fachin quando do julgamento dos embargos de declaração no RE nº 855.178/SE (Tema 793) o Supremo Tribunal Federal (embora tenha reafirmado a sua jurisprudência e rejeitado os embargos de declaração) revisitou e ressignificou algumas temáticas que havia trabalhado quando do julgamento da STA 175, dentre as quais a da solidariedade. Mas talvez pela sutileza como o acórdão foi redigido (o precedente foi mais bem desenvolvido sem, contudo, ser superado), o que se viu a seguir nas demandas judiciais espalhadas pelo País foi uma reprodução quase mecânica de que “o STF rejeitou os embargos de declaração e reafirmou a sua jurisprudência acerca da solidariedade” (como se o precedente só tivesse a Ementa!), ou seja, os Tribunais e juízos de primeiro grau passaram a aplicar o voto vencido proferido pelo Ministro Luiz Fux ao invés do voto vencedor.

Essa parece ser a maior lição que se pode tirar a partir da leitura do acórdão proferido no RE nº 855.178/SE (Tema 793) e dos desdobramentos que se seguiram a partir do precedente: a brandura e a sutileza empregadas na redação do voto vencedor não contribuíram para a segurança jurídica e para a pacificação social. A solidariedade foi ressignificada, mas continuou sendo aplicada pelos juízos e Tribunais espalhados pelo País da mesma forma que era aplicada anteriormente ao voto (solidariedade clássica do Código Civil como se os entes públicos fosse avalistas de um título de crédito numa relação tipicamente privada). Foi preciso reconhecer a repercussão geral de um novo Tema (Tema 1234) de forma a conferir segurança jurídica no que se refere a aplicação do Tema 793.

Nesse sentido, as técnicas de DIRECIONAMENTO e RESSARCIMENTO mencionadas de forma expressa no acórdão relativo ao Tema 793 assumirão um importantíssimo protagonismo quando do julgamento do Tema 1234, já que elas se traduzem, justamente, nos “mecanismos, protocolos e fluxogramas necessários para assegurar o acesso efetivo da população a direito fundamental, sem desequilíbrio financeiro e desprogramação orçamentária.”[2].

Nessa ótica, nenhuma decisão de direcionamento e/ou ressarcimento que contribua para “desequilíbrio financeiro” e “desprogramação orçamentária”, ou seja, contribua para distorção (e consequente “adoecimento”) do sistema de saúde (SUS) é compatível com a decisão já tomada pelo STF no bojo do Tema 793 e, consequentemente, com a Constituição de 1988. Em outros termos: direcionamento e ressarcimento nasceram para ser “vacina” e “remédio” que protege o SUS ao mesmo tempo que se cuida do paciente (usuário). Se aplicados no ente público errado ou se utilizados em uma dose equivocada[3] essas estratégica funcionarão como “placebo” (dando a falsa impressão de que o problema está resolvido) em um primeiro momento e “veneno” a se considerar uma perspectiva de médio e longo prazo.

Nesse particular, é de extrema ingenuidade pensar que eventual acolhimento de uma das teses defendidas pelos estados e municípios (as demandas envolvendo medicamentos não padronizados deverão ser mandadas para a Justiça Federal depois da inclusão da União na lide), por si só, importará em equilíbrio federativo no âmbito do SUS. Solução nesse sentido será tímida, da mesma forma que ocorreu quando do julgamento do Tema 793 e, assim, União Federal, estados e municípios permanecerão “todos iguais, mas uns mais iguais do que outros.”[4]

Com efeito, se no julgamento do Tema 1234 as técnicas do direcionamento e ressarcimento não assumirem o protagonismo devido e não forem tratadas como “vacina” e “remédio” (ao invés de “placebo” e ”veneno”) corre-se o risco de depois de tanto termos remado nós retornarmos ao mesmo lugar (Looping temporal processual).

Aliás, sem pretender dar “spoiler”, já há casos que podem ser observados no âmbito da Justiça Federal em ações originariamente nela propostas de utilização dessas técnicas de direcionamento e/ou ressarcimento de forma absolutamente descolada e distanciada da diretriz já ofertada pelo STF de se evitar “desequilíbrio financeiro” e “desprogramação orçamentária”:

  • Direcionamentos do cumprimento da obrigação a estado/município face à mora da União no cumprimento de decisão judicial (utiliza-se o direcionamento ao invés da “medida de apoio”: se a União não cumpre a decisão judicial o outro ente irá cumprir no seu lugar);
  • Direcionamento do cumprimento da obrigação a ente que não tem responsabilidade pela prestação de forma a atender a uma comodidade do paciente sem garantia de efetivo e imediato ressarcimento (ressarcimentos deixados para as “calendas gregas”… Quando? Como?);
  • Determinação para que o ressarcimentos de estados e municípios ocorra via precatório judicial (embora, a depender do tipo de tratamento de saúde, compete a União Federal fazer o financiamento prévio ou até a aquisição prévia: aquilo que para equilíbrio do sistema deve ser prévio – e nesse contexto líquido e certo – se torna incerto).

Os exemplos acima são uma prévia do que irá ocorrer caso as técnicas do direcionamento e ressarcimento não sejam bem delineadas pelo STF quando do julgamento do Tema 1234. Com efeito, de nada adiantará romper a “barreira” até então existente de permanência dos processos na Justiça estadual e sem a presença da União (direcionamento e ressarcimento hoje inviabilizados considerando a eficácia subjetiva da coisa julgada – Artigo 506 CPC) se:

  • O direcionamento não for bem empregado a partir de critério puramente objetivo e uniforme (a escolha do ente que irá cumprir a obrigação não é solipsismo, não é sorteio, não é revezamento, não é “Uni, duni, tê”), ou seja, as regras de repartição de competências do SUS (e para os “não padronizados” a analogia com os padronizados);
  • Não ficar clara a obrigatoriedade de ressarcimento imediato (via depósito judicial) ao ente que, por força da solidariedade, cumprir uma obrigação no lugar do outro.

Só assim o “looping” vai deixar de ser “looping” e nós iremos andar para a frente e, finalmente, sair do lugar.

 


 

[1] https://www.conjur.com.br/2022-jun-28/gustavo-enoque-superacao-loop-temporal-processual

https://www.conjur.com.br/2023-abr-18/gustavo-enoque-loop-temporal-processual-funcionamento-sus#_ftn1

[2] trecho da decisão monocrática proferida pelo Ministro Gilmar Mendes RE 1.366.243/SC (Tema 1234).

[3] A diferença entre o remédio e o veneno é a dose.

[4] frase de George Orwell no livro “A Revolução dos Bichos” – trecho da música “Ninguém = Ninguém” do Engenheiros do Hawaii.

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